quinta-feira, fevereiro 03, 2005

proj.: RELATOS PRIVADOS, DISPOSITIVOS FICCIONAIS E (AUTO)BRIOGRAFIAS RETÓRICAS

Luciana Marques

Permiti-me a mim mesma um capricho: clicar três vezes no botão de ‘random’ (Oblique Strategies), e esperar que o que surgisse apoiasse ou que pusesse logo de parte a ideia que eu estava disposta a consolidar. Tive sorte. Ou então o que surgiu iria, de qualquer das formas, fazer sempre sentido para mim.

‘Change nothing and continue with immaculate consistency.’
Brian Eno . Peter Smith



RELATOS PRIVADOS, DISPOSITIVOS FICCIONAIS E (AUTO)BRIOGRAFIAS RETÓRICAS

O conceito que pretendo desenvolver no meu projecto foi extraído do meu dia-a-dia em Barcelona. Não que ele já não estivesse de certa forma implícito na minha rotina, esteja eu onde estiver, mas em Barcelona, e mais concretamente no espaço do Metro, foi de tal forma evidente que não pude deixar de o materializar e de o procurar desenvolver.
Confinada a um espaço reduzido e tão extenso nos seus corredores e múltiplas carruagens, e de toda a quantidade de pessoas que o frequentam e o habitam. Rodeada de pessoas que se evitam olhar, somente fixando o seu destino. Entro na carruagem. Sento-me ou estou de pé, mas sempre acompanhada. Obrigo-me a olhar os outros. Estamos todos juntos sem mais fontes de distracção para além de nos observarmos. Dessa forma entro nas suas vidas e permito que invadam a minha. Um jogo de observar e ser observado, e as sensações íntimas que essas miradas provocam.
Muitos lêem. Livros. Livros grossos. Eu enjoo se leio.
Construo histórias a partir dos títulos dos livros que nem sempre entendo, das paragens em que entram ou saem, o que falam, o que vestem. Desenvolvo-as na possibilidade da minha imaginação e de como ela constrói os outros.
Um desfazamento, um sentimento de estranheza que leva à intrusão na intimidade e à difusão pública de mundos privados. Através do que capto dos outros, das escassas informações que me dão e que se tornam tão importantes, desenvolvo estas novas histórias e percursos que tanto têm de real como de fictício. A minha capacidade de reter vidas e reconstruí-las através do meu olhar e até onde ele me leva. Como se os meus olhos e o meu cérebro fotografassem, por vezes filmassem, retendo e criando. Seguindo os personagens da minha narrativa, procurando descobrir e inventar mais para além do que tive acesso. Situar-me na margem da alteridade e do reflexo.
Falsas cópias e cópias autênticas, impostura e representação. Mentiras verdadeiras -, assim como as inumeráveis delícias que a imagem (estática ou em movimento) proporciona ao voyeur, ao espectador, e a todo aquele/aquela que se sente ou se sabe observado/observada.
Qual a fronteira entre realidade e ficção, quais os limites entre representação e verosimilitude, a distância entre o mundo real e o mundo textual, entre realidade e desejo, quando finalmente o desejo instala-se nas nossas vidas de um modo tão poderoso que contamina, contagia e expande até todo o tipo de territórios exteriores, propiciando precisamente a criação dessas vidas paralelas nas quais pode acontecer tudo aquilo que habitualmente temos carência, tudo aquilo que desejamos.
Estabelecer estas relações peculiares entre realidade e ficção. Novas interpretações dos outros, de nós mesmos; novas construções.
Uma incerta teoria do personagem. Construir a imagem pública através das minhas necessidades e intenções.
Reconhecer que as formas da memória utiliza procedimentos comuns a qualquer tipo de relato de ficção, mas que oferecem uma notória resistência a serem reduzidas às categorias da ficção. Mesclar as duas, sem procurar estabelecer barreiras ou distingui-las.
Procurar explorar a questão de identidade, do sujeito em processo, tendo sempre presentes, em todos os casos, as suas possibilidades, multiplicidades, alterações e os seus altamente produtivos mecanismos de representação.
Partindo da ideia de que a fotografia é essencialmente uma história, um relato, que não concede objectividade desinteressada e que está submergida em propósitos emocionais.
Relacionar o meu projecto com a ideia de simulacro e de aparência, acerca da sedução e do jogo de observar, acerca da distância entre o público e o privado, acerca das obcessões e dos desejos, das ficções, da intrusão, da espionagem, da vigilância, acerca do intercâmbio entre observador e observado.
Inevitável referência à questão do processo, do ritual e da cerimónia. Até que os acontecimentos mais insignificantes acabam adquirindo as formas de um ritual inventado e exclusivo, ordenado e eficaz, quase lógico, mas ao fim e ao cabo um ritual, no qual o processo converte em real e verosímel todo o ocurrido e que vai ocorrer.

Tudo parece matéria de ficção e todos personagens de novela. Visualizo o meu projecto em imagens estáticas, em movimento (enquanto sigo os meus personagens) e nas suas/ minhas narrações.

fbaup, janeiro 2005