terça-feira, março 01, 2005

Lisboa: LX, PT ou SL ?

Gonçalo Falcão

Quando as pessoas se começaram a juntar e a viver em comunidade, rapidamente se aperceberam que precisavam de símbolos de união. Totens, estandartes, bandeiras, padrões de tecido simbolizam valores colectivos e cimentam a união. Traduzem algo em que todos se reconhecem; algum feito, líder, episódio ou deus(es) com os quais o grupo partilha valores e convicções.

Lisboa reconhece-se num episódio curioso de uma transladação em 1173: uma barca traz um cadáver do Algarve para Lisboa, acompanhada por dois corvos. Os Lisboetas adoptaram este episódio e revêem-se nesta imagem de um porto eleito, acolhedor, cosmopolita e aberto ao que vem do mar, desde pelo menos 1233. E viveram felizes com esta ideia durante 8 séculos.

Jorge Sampaio, tendo ganho em 1990 a presidência da Câmara de Lisboa, achou que a iconografia precisava de uma «movida». Claro que o símbolo tinha sido redesenhado inúmeras vezes ao longo de setecentos anos e não podemos considerar que haja uma versão definitiva. Mas desta feita a operação foi profunda, resultando numa redução e simplificação. Um só corvo colocado sobre a palavra Lisboa que aparentava ter sido esboçado sumariamente. Ficámos pior, mas ainda assim havia um sentido simbólico que se mantinha.

Sampaio desiste e segue-lhe Soares filho. Mais uma vez o corvo e a barca têm que se moldar à voz do dono e passam a ser um apontamento tipo borrão que perfaz o braço direito de uma enorme estrela, um símbolo vulgar e plurisignificante. Também não deixou saudades.

Soares filho perde e ganha Santana Lopes. E a imagem da câmara volta a mudar. Com Santana Lopes a marca abandonou definitivamente 772 anos de história e assumiu contornos novos.
A solução para a nova marca da cidade não foi discutida, nem participada, nem concursada. Apareceu de mansinho no site da CML, com uma descrição pateta de «imagem de marca forte e moderna, com grande receptividade em eventos nacionais e internacionais». Sem uma consulta aos Lisboetas, Lisboa passou a LX.

Esta nova marca foi desenhada pela Euro RSCG e é francamente pobre: «foi pensada com o objectivo de comunicar a cidade e promover uma atitude activa, através de uma nova forma de olhar para a cidade e de referentes conceptuais inovadores». «Há que conhecer Lisboa e com ela interagir através dos nossos 5 sentidos, provocando em cada um de nós uma atitude activa em relação à cidade através de um conceito que se nos dirige de forma pessoal, captando o nosso interesse e responsabilizando-nos perante a cidade. Provocar o sentido de curiosidade e também o de responsabilidade enquanto turistas e cidadãos. “Sentir Lisboa” é “Melhorar Lisboa”». Mas a Câmara quando aprovou isto não percebeu que a ideia de conhecer Lisboa com os 5 sentidos (que é por si só simplista) não está expressa? Que é preciso mais do que pintar cinco elementos de cores diferentes para poder dizer que cada cor representa um sentido? Porque é que o azul ultramarino é igual a «ouvir»? E o azul claro «ver»? O que é «Sentir Lisboa», ou sentir uma cidade?.
É tão fácil fazer design assim. Já repararam que este discurso, de tão vago que é, dá para qualquer cidade do Mundo? Sentir Xangai é melhorar Xangai? Porquê? «Há que conhecer Tikrit com os 5 sentidos, provocando em cada um de nós uma atitude activa em relação à cidade através de um conceito que se nos dirige de forma pessoal». Qual é o conceito que se nos dirige de forma pessoal? Não há uma ideia, quanto mais um conceito.

Além da ausência de um discurso interessante, a nova marca da capital é má em termos técnicos. O xis é sugerido pela disposição de cinco quadrados irregulares de cores diferentes. Aqui temos dois problemas. O primeiro é que só o preto pertence à heráldica da cidade. E se se tivesse escolhido as cores que de facto pertencem ao Brasão de Lisboa (ouro, negro, prata, verde) talvez se tivesse evitado o segundo problema. É que esta marca é quase inaplicável (como a Câmara percebeu pouco depois): se o fundo for preto, o L desaparece. Se for azul escuro ou claro, verde, amarelo, vermelho ou laranja, uma das pintas não se distingue e o xis fica coxo. Sabendo-se que a marca de uma cidade tem um leque enorme de aplicações e sobre uma imensidade de suportes e materiais, não devia ser a capacidade de se manter íntegra e perceptível quando usada um critério fundamental ?

Estas coisas custam dinheiro. Aprovada em Maio de 2003, em Março de 2004 é apresentada uma nova imagem. A vereação voltou atrás e pediu à mesma empresa para reintroduzir a nau com os corvos ao lado da designação Lisboa. Estas coisas custam mais dinheiro. Do processo de remake fica o registo de uma gestão camarária que se esqueceu de se representar e volta atrás, mantendo o grosso da asneira.

Mas diga-se em respeito pela verdade que a Câmara Municipal de Lisboa não aboliu a heráldica anterior. A edilidade criou uma marca nova, que utiliza superiormente à oficial, que é o sinal deste período governativo. E este novo cunho de Lisboa serve para quê afinal? Para que se saiba que a rua X foi repavimentada ou que se fez uma chafarica ou um canteiro por ordem da actual vereação. A marca de Lisboa é apenas e só o timbre de um período.

Os munícipes e o enquadramento histórico e simbólico da cidade não interessam muito a esta nova imagem; é tão neutra e descomprometida com o que supostamente representa, que poderia perfeitamente ser a marca de Santana, acompanhando agora o seu desempenho primo-ministerial. Poderíamos ter um PT de Portugal, em que o T era constituído pelos 5 quadrados coloridos e quando Santana sair da Governação usaria a marca na versão SL, com o L feito com os quadrados toscos, até novo aplique. Seria um estrutura formal, adaptável e colorida, descomprometida e sem conteúdos, que se molda à carreira política do seu mentor. Poupava-se e reciclava-se.

O design procura contribuir para o bem comum, por isso, um trabalho com o de interrogar e eventualmente redesenhar a marca de um grupo de pessoas tem que forçosamente ser feito com elevação, reflexão, respeito pelo passado e vontade de contribuir para o futuro. Uma nova imagem para Lisboa deveria ser muito mais que um ferro de marcar das vereações, que é imposto à força e de forma dolorosa, e ainda por cima em património que não lhe pertence.