terça-feira, março 01, 2005

Marcas património nacional ?

Gonçalo Falcão
gfalcao@ideia-ilimitada.pt


O design gráfico assenta sobre materiais muito perecíveis. Ao contrário da arquitectura, por exemplo, a maior parte dos suportes do design — papel, cartão, vinil, plásticos, etc. — deterioram-se muito rapidamente. Este facto está directamente relacionado com o facto de, a maior parte das criações do design de comunicação terem uma vida útil pequena. Um mostrador para um produto, um outdoor para uma campanha, um mupi, um desdobrável, uma etiqueta, uma embalagem, têm uma vida útil curta. Da arquitectura espera-se o contrário, a imortalidade.
Com excepção dos livros, os objectos impressos têm uma insustentável leveza e tendemos a vê-los como lixo predestinado.

As marcas — os símbolos e os logótipos — têm uma natureza semelhante à dos objectos impressos; ou melhor, como os suportes em que assentam não têm o peso do cimento e da pedra, aparentam ser muito facilmente demolíveis. Há duzentos anos, uma empresa era um nome, representava uma família. A falência era vista como uma desgraça, uma vergonha, que poderia levar até ao suicídio. Hoje em dia, uma empresa é uma entidade contabilística sem rosto e a falência um dispositivo financeiro. As grandes empresas e as marcas de grande exposição já não são projectos pessoais. São resultado de fusões, compras, anexações de «áreas de negócio». As marcas deixaram de identificar um produto para representarem uma escolha, uma maneira de consumir.

No entanto, a marca de uma empresa pode, como no caso de uma empresa nacional como a EDP, ser muito mais importante para o país que um edifício da EDP. Até que a sua sede.
As marcas das empresas e das instituições têm uma vida pública; comunicam connosco e nalguns casos fazem parte do nosso dia-a-dia, do nosso património afectivo e de uma identidade colectiva. Por exemplo: o símbolo da Eurovisão que aparecia no ecrã no tempo dos dois canais e que nos fazia sentir parte do mundo (numa altura em que não havia internet nem expressões como “aldeia global”) faz parte do património afectivo de grande parte da população. O símbolo da TAP (como o da Swissair para os suíços) é um dos elementos que ajuda a construir uma identidade colectiva em Portugal (o desaparecimento da Swissair foi motivo de enorme tristeza para os suíços e o surgimento da Swiss, com novos símbolos, não foi o suficiente para colmatar essa melancolia do desaparecimento da empresa que «representava» a Suíça, nos ares).

Actualmente tenho a sensação que algumas empresas, especialmente as de capitais públicos, mudam de imagem só para dar dinheiro a ganhar a algumas «agências de comunicação». Até porque, normalmente, uns meses depois de mudarem, voltam a remudar, repagando o serviço à mesma empresa que aparentemente o tinha executado mal (CML, RDP, etc).

A EDP – Electricidade de Portugal, é um caso exemplar do canibalismo das marcas que se vive actualmente, e serve para demonstrar, que talvez fosse necessário, à semelhança da arquitectura, criar a noção de património classificado nas identidades das empresas e das instituições.
Não para que fosse impossível mudar, mas para que houvesse uma consciência da excelência de algumas marcas e da importância que têm para a identidade nacional.
A companhia de seguros Tranquilidade, por exemplo, é um dos exemplos de perfeição que há em Portugal. O símbolo da Tranquilidade1 — um «t» protegido por uma redoma que lhe permite recostar-se, descansar e alongar-se, incorpora, com uma simplicidade, equilíbrio e flexibilidade extremos, a ideia de uma companhia de seguros. Não só do que é que faz uma companhia de seguros, mas das vantagens que proporciona. O símbolo foi desenhado no final da dácada de 602 (provavelmente 1968), é intemporal (não está formalmente associado a uma época) e é original (distingue-se da concorrência). Tem sofrido alterações subtis de forma a acompanhar a vida da empresa.

A EDP é o contrário. Surgiu depois do 25 de Abril com a nacionalização das Companhias Reunidas de Gás e Electricidade e com uma marca desenhada Por José Santa-Bárbara3. Em 1991, por razões políticas, a empresa partiu-se em três e surgiu a necessidade de mudar a imagem. Em concurso, ganha Carlos Rocha — Letra Design, com uma marca que sobreviveu bem até 20044. Altura em que volta a mudar5, sem concurso e sem razões aparentes.
A primeira marca, uma simplificação da sigla através de um raio. Na segunda marca o símbolo passa a ser o que gera a electricidade e o que ela faz gerar. Uma representação de uma turbina está ligada à ideia da produção, mas também à ideia de movimento que é produzido pela energia.
Percebe-se que a EDP pensasse que, passados 13 anos e com a mudança do negócio da energia, a marca não lhe servisse e quisesse direccionar a marca em direcção ao consumidor, ao utilizador doméstico. Sem querer aqui fazer grandes considerações sobre esta opção, que é perfeitamente aceitável, atentemos no resultado.

Diz a EDP: «Mudámos para estar mais próximo de si» e nós sabemos que estão à mesma distância. A EDP não mudou nada no nosso serviço. Nem sequer as facturas ficaram descodificáveis. «Assistimos recentemente ao renascer da EDP, com uma nova cara. Um sorriso — sincero, espontâneo e próximo de todos.”. Renascer da EDP? Sorriso sincero? Próximo de todos (nas facturas?).
Que marotos; a brincar connosco. Um sorriso. É isto que representa uma empresa estrutural para o país. Na opinião da companhia o sorriso resume tudo. Não falam de electricidade, de energia, de consumo (ou redução dele) de ambiente… sorriem. Corra mal ou bem, sejam os serviços competentes ou não: alegra-se. É mais uma daquelas imagens que dá para tudo. Podia ser da EDP, da PT, da Edifer, do Pingo Doce ou do Ás-das-Farturas.

Da da Edifer, do Pingo Doce ou do Ás-das-Farturas talvez não pudesse ser. É que sendo estas empresas privadas, têm cuidado com o que dizem, com a forma como se apresentam no mercado; querem diferenciar-se da concorrência e focar num produto ou serviço. O novo símbolo da EDP, que acaba com o anterior escusadamente, só poderia ser de uma empresa de capitais públicos, onde um sorrir parece ser suficiente para representar o negócio de fornecer energia e soluções energéticas a consumidores privados e a grandes empresas. Muito riso, pouco siso.