proj. O CAMPO EXPANDIDO DO CORPO/TRANSMUTAÇÕES
Bruno Oliveira
Ao longo dos últimos anos fomos assistindo a uma recorrência da temática ligada ao corpo em diferentes áreas da chamada produção cultural, numa configuração com perspectivas distintas mas sempre com uma intensidade notável. Este facto pode ser entendido como mero resultado das marés que vão procurando renovar ciclicamente o cardápio das indústrias culturais, ou então, como eu prefiro, integrado num movimento menos superficial e de mais longa duração que é sobretudo sintoma de uma crise da ideia que vamos continuamente construindo à volta do que possa ser o nosso corpo.
Como explicar esse movimento constante à volta de uma ideia do corpo que se foi tornando cada vez mais difusa, ao ponto de nos obrigar até a pensar sobre a eventualidade (para alguns fatalidade) do desaparecimento do seu objecto?
Essa crise leva-nos a colocar a hipótese de um estado pós-humano, uma outra forma de nos referirmos ao desvanecimento do corpo. Mesmo sem recorrer aos lugares-comuns da ficção científica é possível detectar um sem número de sinais dessa condição pós-humana e a sua simples enumeração seria assunto para todo um outro texto. Sistematizando, podemos associar esses sinais ao deslocamento e ao desvanecimento das fronteiras que nos habituámos a desenhar em redor da ideia do corpo, limites esses fundamentais para a construção de uma identidade distintiva do humano. Essa batalha intensa que faz do organismo humano campo de acção participa na reconstrução e desfocagem, por exemplo, da velha dualidade cartesiana entre corpo e mente, da oposição entre orgânico e mecânico (o homem e a máquina), ou mesmo da linha de separação entre a vida e a morte.
Como qualquer identidade, também a ideia do humano se definiu sempre por oposição àquilo que lhe era pretensamente exterior.
Podemos verificar um movimento distintivo vertical (ascendente em direcção ao divino e descendente no sentido da animalidade), e um outro horizontal (face as coisas que nos rodeiam). Enquanto que no movimento vertical estaria sempre presente um sentido latente da coisa viva, no movimento horizontal seríamos confrontados com a coisa inanimada. Ora, é neste movimento horizontal que podemos encontrar o desafio mais espantoso que a ideia do corpo, e por arrastamento uma certa identidade do humano, vão enfrentando. Pois não é exactamente no domínio dessa horizontalidade que se encontram todos os objectos inanimados que vão entretanto reclamando uma vida própria, quando não mesmo uma fusão com os nossos próprios corpos? Pois não podem essas coisas ser uma coisa que pensa (em boa medida uma negação daquilo que entendemos por uma coisa)? E não são muitas delas pensadas como uma metáfora da complexidade dos nossos próprios organismos (bastaria aqui dar o exemplo das chamadas redes neuronais)?
A matematização crescente da realidade, expressa através de uma abstracção reduzida aos zeros e uns da computação, tem tido neste processo de criação da ideia de um corpo pós-humano um papel fundamental. Digamos que essa sequenciação numérica foi o último passo para que possamos afirmar que a informação não tem corpo, levando-nos a acreditar que esta pode circular inalterada entre diferentes substractos materiais. Esta imunidade da informação digital perante os diferentes substractos físicos dos seus canais, é identificada através do termo metamorfopsia digital – perturbação perceptiva que se traduz na modificação deformante da visão das formas, das dimensões de objectos ou de pessoas; movimento imparável através do qual quaisquer mutações deformantes da realidade e das suas representações se tornam indiferentes face à natureza niveladora dos zeros e uns da computação.
Gostaria antes de utilizar a expressão campo expandido do corpo para definir essa situação, escapando assim ao prefixo do pós-humano.
Se o corpo replica aquilo que lhe é exterior para melhor assegurar a sua sobrevivência, podemos afinal dizer que a nossa porta com o mundo habita já o limbo dos canais de comunicação onde circula a informação incorpórea? Será que de algum modo podemos falar da desmaterialização do nosso próprio corpo? Será que é isso que representa esse campo expandido do corpo?
A única forma de entender essa deriva do corpo num campo expandido de possibilidades é escapando à fatalidade tecnológica que nos parece impôr um modelo evolutivo (dissolutivo) para o corpo. Teremos assim o imperativo de uma desfatalização da tecnologia.
Não podemos falar de uma desmaterialização do corpo mas antes de uma rematerialização que obriga a um entendimento diferente da identidade humana. A conceptualização digital do corpo obriga-nos a refletir novos conceitos de mediatização do real, merecendo uma reactualização a partir de um triângulo de complementaridades (percepto–afecto–concepto) capaz de o libertar dos riscos empobrecedores causados pela metamorfopsia digital.
Finalmente, depois de dissolvida a nitidez das distinções entre entre a pretensa solidez do real e a ilusão volátil do virtual, entre a abstracção do digital e a figuração analógica, ou entre a sensualidade do orgânico e a frieza do inorgânico, renova-se o interesse pelo trânsito entre as diversas polaridades formadas de um lado e do outro dessas linhas que ganharam agora espessura. Os movimentos sem destino entre esses territórios aparentemente apartados fazem-se sobretudo na membrana que os une e separa, constituindo assim um campo aberto de possibilidades para o corpo. Devemos pois recordar que o corpo é, apesar de tudo, ainda o lugar e o motor da experiência e que essa membrana é cada vez mais o espaço que ele habita. Aliás, é no espaço entre as coisas que melhor se realiza a deriva e só aí seremos capazes de compreender o campo expandido do corpo.
É com base nesta pequena reflexão sobre o corpo, como suporte e meio de expressão que tento establecer um paradoxo entre o real e não real, a identidade pessoal e até que ponto esta se entrusa com a nossa entidade física, o mediado e o não mediado (ou o minimamente mediado).
Dentro de um ponto de vista narcísico, relativos à expressão da imagem, o registo gira em volta da expressão, sendo essa própria expressão, transmutações do real. Ou seja, assumem um papel de irreconhecimento do espectro do real, dentro da própria imagem e daquilo que lhe é exterior. Assume-se uma ilusória adaptação ao corpo em específicos momentos, demonstrando uma necessidade de ruptura.
Consequentemente, a imagem corpo torna-se um mediador incontornável do discurso da personagem sobre sí próprio; essa imagem modifica-se de acordo com as necessidades defensivas que a mesma personagem experimenta.
FBAUP, janeiro 2005
Ao longo dos últimos anos fomos assistindo a uma recorrência da temática ligada ao corpo em diferentes áreas da chamada produção cultural, numa configuração com perspectivas distintas mas sempre com uma intensidade notável. Este facto pode ser entendido como mero resultado das marés que vão procurando renovar ciclicamente o cardápio das indústrias culturais, ou então, como eu prefiro, integrado num movimento menos superficial e de mais longa duração que é sobretudo sintoma de uma crise da ideia que vamos continuamente construindo à volta do que possa ser o nosso corpo.
Como explicar esse movimento constante à volta de uma ideia do corpo que se foi tornando cada vez mais difusa, ao ponto de nos obrigar até a pensar sobre a eventualidade (para alguns fatalidade) do desaparecimento do seu objecto?
Essa crise leva-nos a colocar a hipótese de um estado pós-humano, uma outra forma de nos referirmos ao desvanecimento do corpo. Mesmo sem recorrer aos lugares-comuns da ficção científica é possível detectar um sem número de sinais dessa condição pós-humana e a sua simples enumeração seria assunto para todo um outro texto. Sistematizando, podemos associar esses sinais ao deslocamento e ao desvanecimento das fronteiras que nos habituámos a desenhar em redor da ideia do corpo, limites esses fundamentais para a construção de uma identidade distintiva do humano. Essa batalha intensa que faz do organismo humano campo de acção participa na reconstrução e desfocagem, por exemplo, da velha dualidade cartesiana entre corpo e mente, da oposição entre orgânico e mecânico (o homem e a máquina), ou mesmo da linha de separação entre a vida e a morte.
Como qualquer identidade, também a ideia do humano se definiu sempre por oposição àquilo que lhe era pretensamente exterior.
Podemos verificar um movimento distintivo vertical (ascendente em direcção ao divino e descendente no sentido da animalidade), e um outro horizontal (face as coisas que nos rodeiam). Enquanto que no movimento vertical estaria sempre presente um sentido latente da coisa viva, no movimento horizontal seríamos confrontados com a coisa inanimada. Ora, é neste movimento horizontal que podemos encontrar o desafio mais espantoso que a ideia do corpo, e por arrastamento uma certa identidade do humano, vão enfrentando. Pois não é exactamente no domínio dessa horizontalidade que se encontram todos os objectos inanimados que vão entretanto reclamando uma vida própria, quando não mesmo uma fusão com os nossos próprios corpos? Pois não podem essas coisas ser uma coisa que pensa (em boa medida uma negação daquilo que entendemos por uma coisa)? E não são muitas delas pensadas como uma metáfora da complexidade dos nossos próprios organismos (bastaria aqui dar o exemplo das chamadas redes neuronais)?
A matematização crescente da realidade, expressa através de uma abstracção reduzida aos zeros e uns da computação, tem tido neste processo de criação da ideia de um corpo pós-humano um papel fundamental. Digamos que essa sequenciação numérica foi o último passo para que possamos afirmar que a informação não tem corpo, levando-nos a acreditar que esta pode circular inalterada entre diferentes substractos materiais. Esta imunidade da informação digital perante os diferentes substractos físicos dos seus canais, é identificada através do termo metamorfopsia digital – perturbação perceptiva que se traduz na modificação deformante da visão das formas, das dimensões de objectos ou de pessoas; movimento imparável através do qual quaisquer mutações deformantes da realidade e das suas representações se tornam indiferentes face à natureza niveladora dos zeros e uns da computação.
Gostaria antes de utilizar a expressão campo expandido do corpo para definir essa situação, escapando assim ao prefixo do pós-humano.
Se o corpo replica aquilo que lhe é exterior para melhor assegurar a sua sobrevivência, podemos afinal dizer que a nossa porta com o mundo habita já o limbo dos canais de comunicação onde circula a informação incorpórea? Será que de algum modo podemos falar da desmaterialização do nosso próprio corpo? Será que é isso que representa esse campo expandido do corpo?
A única forma de entender essa deriva do corpo num campo expandido de possibilidades é escapando à fatalidade tecnológica que nos parece impôr um modelo evolutivo (dissolutivo) para o corpo. Teremos assim o imperativo de uma desfatalização da tecnologia.
Não podemos falar de uma desmaterialização do corpo mas antes de uma rematerialização que obriga a um entendimento diferente da identidade humana. A conceptualização digital do corpo obriga-nos a refletir novos conceitos de mediatização do real, merecendo uma reactualização a partir de um triângulo de complementaridades (percepto–afecto–concepto) capaz de o libertar dos riscos empobrecedores causados pela metamorfopsia digital.
Finalmente, depois de dissolvida a nitidez das distinções entre entre a pretensa solidez do real e a ilusão volátil do virtual, entre a abstracção do digital e a figuração analógica, ou entre a sensualidade do orgânico e a frieza do inorgânico, renova-se o interesse pelo trânsito entre as diversas polaridades formadas de um lado e do outro dessas linhas que ganharam agora espessura. Os movimentos sem destino entre esses territórios aparentemente apartados fazem-se sobretudo na membrana que os une e separa, constituindo assim um campo aberto de possibilidades para o corpo. Devemos pois recordar que o corpo é, apesar de tudo, ainda o lugar e o motor da experiência e que essa membrana é cada vez mais o espaço que ele habita. Aliás, é no espaço entre as coisas que melhor se realiza a deriva e só aí seremos capazes de compreender o campo expandido do corpo.
É com base nesta pequena reflexão sobre o corpo, como suporte e meio de expressão que tento establecer um paradoxo entre o real e não real, a identidade pessoal e até que ponto esta se entrusa com a nossa entidade física, o mediado e o não mediado (ou o minimamente mediado).
Dentro de um ponto de vista narcísico, relativos à expressão da imagem, o registo gira em volta da expressão, sendo essa própria expressão, transmutações do real. Ou seja, assumem um papel de irreconhecimento do espectro do real, dentro da própria imagem e daquilo que lhe é exterior. Assume-se uma ilusória adaptação ao corpo em específicos momentos, demonstrando uma necessidade de ruptura.
Consequentemente, a imagem corpo torna-se um mediador incontornável do discurso da personagem sobre sí próprio; essa imagem modifica-se de acordo com as necessidades defensivas que a mesma personagem experimenta.
FBAUP, janeiro 2005
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