segunda-feira, outubro 25, 2004

Henrique Nono

de Martin Amis

texto referência para projecto 01, fotografia II


O Rei não está no seu escritório, a contar o seu dinheiro. Está numa sala de estar na Place des Vosges, a absorver péssimas notícias. O escudeiro na poltrona em frente chama-se Brendan Urquhart-Gordon. Entre do dois, pousada na mesinha de vidro, uma fotografia de face para baixo e uma pinça. A própria sala era uma fotografia: durante vários minutos nenhum dos homens mexeu ou falou.
Faltava um vibração para animar a cena e ela veio: a nota de um diapasão, como se uma das mil facetas do lustre de pingentes se ajeitasse minuciosamente dentro dessa tonelada de vidro.
Henrique IX disse:
— Que mundo terrível este em que vivemos Bugger. É mesmo… nojento, aterrador, este mundo.
— É, sem dúvida, sir. Permita-me que sugira um brandy sir.
O Rei aceitou. Urquhart-Gordon tocou a campainha. Mais vibrações: escandalosamente agudas. O criado, Love, surgiu à porta, lá na ponta da sala. Urquhart-Gordon não tinha nada contra Love, mas incomodava-o chamá-lo pelo nome. Como pode haver quem queira um criado chamado Love?
— Dois Remy reserve, grandes, por favor, Love — pediu ele.
O Defensor da Fé (chefiava na verdade a Igreja de Inglaterra, episcopaliana, e a Igreja da Escócia, presbiteriana) prosseguiu:
— Sabes, Bugger, isto abala a minha fé. E a tua não?
— A minha fé foi sempre uma palha fina, sir.
Expressão improvável, talvez, vinda de um homem com figura de paxá. Calvo, tez morena, sanguíneo, com um cérebro judeu (dizia-se) pelo lado da mãe.
— Abala-a até à medula. Esta gente passa realmente das marcas. Não. Pior. Calculo que façam todos parte do maldito «círculo».
— É possível, sir.
— Por que… Como é possível que tais criaturas façam parte dos plenos do Senhor?
Love voltou a entrar e, ao aproximar-se, talvez uma dúzia de relógios, um após outro, começaram a dar horas. Homem institivamente prático, Urquhart-Gordon reflecte e pensa que há mais trabalho a fazer pela modernização do «a» aberto do Rei. Particularmente em tempos de crise, o som era quase o da pronúncia de antes da guerra. As faces rosadas de Brendan tornaram-se por momentos muito mais rosadas ao recordar a visita de Henrique, enquanto Príncipe de Gales, à casa de repouso sindical em Newbiggin-by-the-Sea e o Príncipe ao piano a cantar «O Meu Velho é Lixeiro»: «O meu velho é lixeiro, / Usa chapéu de lixeiro, / Anda com as calças da ferda / E mora num pardieiro!» O Quarto Estado não tardara a comentar que a verdade era outra: o velho de Henrique foi Ricardo IV e viveu no palácio de Buckingham.
Com a cara um pouco desviada dos humores dos balões de brandy, Love continuava a aproximar-se deles a ainda lhe faltava um bom bocado. Eram seis e cinco quando saiu da sala.
— Desculpa-me, Bugger. A minha cabeça está oca. Entregue…?
— A fotografia foi-me entregue em mãos nos meus aposentos, em St James. Num vulgar envelope branco.
Foi este envelope que Urquhart-Gordon tirou então da sua pasta. Entregou a bolsa transparente com o fecho de correr a Henrique IX, que lhe deu uma olhadela mais do que medianamente confusa. Mr Brendan Urquhart-Gordon Esquire e, no canto superior, Particular e Confidencial.
— Nenhum bilhete a acompanhar. A caligrafia e o redundante «Esquire» sugerem punho pouco instruído ou estrangeiro, ou uma tentativa de nos fazer crer isso mesmo. A segurança poderá dar-nos mais.
Urquhart-Gordon estudou a expressão carregada do rei. Normalmente, Henrique IX usa o seu espesso cabelo louro puxado para o lado, sobre a testa. Mas agora, no seu régio desarranjo, a madeixa cai numa franja rebelde, o que lhe torna os olhos ainda mais salientes e inflamados. Henrique IX, olhou-o carrancudo e, em resposta, Urquhart-Gordon encolheu os ombros e disse:
— Aguardamos mais notícias.
— Chentagem?
— Bem. Diria extorsão. Parace bastante evidente que isto não é obra dos jornais, no sentido habitual. Se fosse, então estaríamos a olhar para essa fotografia numa revista alemã qualquer.
— Bugger!
— Lamento, sir. Ou na internet.
Com um gesto de repulsa, Henrique IX foi apara pegar no objecto pousado na mesa. A sua mão vacilou.
— Use a pinça, sir, por favor. Volte-a com a pinça.
O rei assim fez.
Não via a sua filha nua há uns três ou quatro anos e, mais do que tudo o resto, sentiu-se ferido, sentiu-se amargamente comovido ao ver quanto de mulher havia já nela, na sua menina que ainda brincava com as bonecas. Isto, a par do ar sonhador, inofensivo, do rosto, levou o pai a cobrir os olhos com a manga.
— Oh Bugger.
— Oh Hotty.
Urquhart-Gordon olhou por sua vez. Uma rapariga de quinze anos no que era obviamente uma banheira branca, com os braços puxados a um lado, as pernas dobradas num ângulo, dentro de quinze centímetros de água: a princesa Vitória no seu traje de nudez, a sua fantasia de nudez, prefigurando a feminilidade. As notórias linhas do bronzeado sugeriam o Verão: ela parecia, além do mais, estar com um biquíni espectral. Urquhart-Gordon verificara os itinerários registados: aparentemente, a princesa limitara-se a ir de férias. Mas tinha voltado há seis semanas para o colégio interno e já se está quase em Novembro. Porque terão esperado, reflecte ele. Há qualquer coisa na expressão da princesa que o preocupa, que o inquieta ainda mais: a elevação das pupilas… A propósito, a alcunha de Brendan Urquhart-Gordon deriva das suas iniciais, a de Henrique IX, de ter feito o papel de Hotspur numa produção escolar de Henrique IV, Primeira Parte.
— Achas — pergunta o rei, infeliz — que a princesa e um… hã… uma amiga podem ter estado a brincar com a máquina fotográfica e… hã…
— Não, sir. E lamento dizer que acho muito improvável que isto fique por aqui.
O rei pestanejou. O rei obriga sempre a que se conte tudo.
— Deve haver mais fotografias da princesa. Noutras… poses.
— Perdoe-me, sir. Foi infeliz. A questão é: olhe para a cara da princesa, sir. É a cara de uma pessoa que pensa que está sozinha. Devemos consolar-nos com a ideia que a princesa estava e está na ignorância desta intrusão verdadeiramente sem precedentes. De todo inocente.
— Sim. Inocente. Inocente.
— Sir, autoriza-me a que chame o John Oughtred?
— Chama-o. E absolutamente mais ninguém, como é óbvio.
Henrique IX levantou-se, logo, Urquhart-Gordon fez o mesmo. Juntos começaram a andar, um tão aprumado, outro tão encurvado. Atingido finalmente o grande vão da janela central, os dois homens ficaram a olhar para o exterior através da renda, através da trama e teia. Projectores, gruas, guindastes, escadas rectrácteis: os bombeiros do Quarto Estado. Era véspera do segundo aniversário do acidente da rainha. Esperava-se que o rei fizesse uma declaração de manhã, antes de voar de regresso a Inglaterra e a seguir até à cabeceira da esposa. Porque a rainha não estava no jardim, a comer pão e mel. Estava ligada a determinadas máquinas, no Royal Inverness.
— Bem, sir. A divisa da família.
A divisa da família, inculcada em Henrique IX pelo seu pai, Ricardo IV, e o seu avô, João II, não é oficial. Em latim, talvez pudesse ter sido Prosequare. Em inglês é o seguinte: Get On With It [P’ra Frente é o Caminho].
— Que tenho para amanhã? Os da sida ou os do cancro?
— Nem uns nem outros. Os da lepra.
— Os da lepra?… Oh, sim, clero.
— Pode-se adiar, sir. Nem sei como marcaram isso, dado o significado da data — e, acrescentou, convidativo: — Se me permite, sir, marco então o Voo Real para dentro de, digamos… duas horas.
— Não, é melhor eu ir tratar disso dos leprosos, já que estou aqui. P’ra frente é o caminho.
Urquhart-Gordon conhecia o verdadeiro objectivo da visita de Henrique IX a Paris. Foi obrigado a esconder o seu espanto por, a despeito da natureza da corrente crise, o rei estar claramente decidido a ir para a frente (e a despeito da data atroz, do risco atroz). As suas sobrancelhas formam um arco enquanto faz uma série de deduções fascindas.
— E a seguir aos leprosos, que mais?
— Tem que estar no ar ao meio-dia, sir. Há a cerimónia em Mansion House às duas: a homenagem que lhe prestam os de Headway.
Henrique IX voltou a pestanejar para ele.
— A Associação Nacional das Vítimas de Traumatismo Craniano, sir. Depois segue para Norte — disse ele, e acrescentou superfluamente —, a ver a rainha.
— Sim, coitada.
— Sir. Tenho o Oughtred à espera e trato com ele logo, em St James. Temos que evitar a passividade, neste assunto… — abanou a cabeça e acrescentou: — Temos que descobrir por onde começar.
— Oh Bugger.
Urquhart-Gordon teve um impulso de estender a mão e afastar o cabelo da testa de Henrique IX. Mas isso iria surpreender o rei no seu horror a que lhe tocassem: a que um homem lhe tocasse.
— Tenho muita pena de ti, Hotty. Sinceramente, tenho.
Logo a seguir o rei saiu para o banho e Brendan foi sentar-se na sala. Tirou o óculos, ficaram só os olhos castanhos húmidos, vigilantes. Brendan tem um segredo: é republicano. O que faz ali, o que anda a fazer há um quarto de século, é por amor, tudo por amor. Primeiro amor pelo rei e, mais tarde pela princesa.
Quando Vitória esteve para… A Família passava férias em Itália (em algum castello ou palazzo) e levaram-na para dar as boas noites a todos, de roupão, pijama e chinelos com borlas, o cabelo todo puxado para trás pelo banho. Aproximando-se da mesa de jogo, graciosa, em bicos de pés, ela beijou os pais, depois trocou adeuses particulares com outros dois membros do grupo, Chippy e Boy. Sentado um pouco à parte, Brendan lavantou os olhos do seu livro numa expectativa afogueada: quando ela tacitamente o incluiu no trânsito final do seu olhar. Mas depois ela deu a mão à preceptora e virou costas, de cabeça baixa. E Brendan, sobressaltando-se, quase gritara, de desgosto, de completa derrota: por que sinto eu tanto se tu sentes tão pouco? Todo o sangue dentro de si… Brendan sabia que gostava talvez anormalmente da princesa. Seria uma mera paixão estética? Quando olhava para o rosto dela, sentia-se sempre como se estivesse com os óculos de ler mais graduados, de tal modo a carne dela se lhe arrojava, como as faces de uma cunha. Mas isso não explica o seu estado no salão em Itália, quando Vitória foi deitar-se sem lhe dar as boas noites: por exemplo, a tentação penosamente dominada de chorar. — Boa noite, Brendan — dissera ela na noite seguinte; e logo ele se sentiu soberbamente restabelecido. Era amor, mas que espécie de amor? Presentemente, ela tem quinze anos e ele quarenta e cinco. Teve sempre a esperança de que lhe passasse. Mas não passou.
Brendan voltou a olhar para a fotografia da princesa. Fá-lo de relance e com prudência. Foi prudente por si próprio. Pela informação sobre si próprio que daí poderia vir. Claro que a ideia é servi-la, servi-la sempre… Brendan pôs em ordem a sua pasta, preparando-se para a viagem até Orly, para o Voo Real até ao aeroporto da Cidade de Londres e par o jantar de trabalho com John Oughtred.

As oito horas aproximavam-se da Place des Vosges. No rés-do-chão, sob a abóbada alpina da cozinha, o segurança de serviço fitava, carrancudo, os cafés instantâneos… e as cartas de jogar, com os seus símbolos estranhos, espadas e moedas de um outro universo. No andar de cima, Love, com um guardanapo dobrado sobre o antebraço, punha mesa numcanto distante da sala de visitas. Estava a pô-la para dois. Fragrante após as suas abluções, o Rei ia palpando uma peça de mobiliário após outra. Nesta sala, tudo aquilo em que se toca é muito duro ou muito macio, valiosamente duro, valiosamente macio.
Claro que a casa pertence ao amigo especial de Henrique IX, o Marquês de Mirabeau. Menos conhecido é o facto de o marquês ter um outro apartamento na Place des Vosges…
Os relógios deram horas, primeiro à vez, depois em uníssono.
— Pode servir, Love — disse o Rei.
Encostado à parede, sobre o estrado do patamar atapetado, havia um chiffonier do tamanho de uma lareira medieval. O móvel começou então a rolar, deslizando para for a sobre o seu eixo plangente. E entrou He Zijen, bisneta de concubinas.
Love deu-lhe as boas vindas.

Quando os relógios voltaram a dar horas He começou a despir-se, tarefa que lhe levaria algum tempo. O rei, já nu, jaz indefeso na chaise-longue, como um bebé a quem vão mudar a fralda. À medida que tirava as peças de roupa, He ia-o acariciando com elas e depois com o que as roupas tinham contido. Acariciaram-se. Ele era duro. Ela era macia. E acariciavam-se.
Do candelabro veio um toque, uma vibração.

In "Cão Amarelo"
Editoral Teorema