segunda-feira, outubro 25, 2004

“Histórias de Mistério e Imaginação”

Edgar Allan Poe
“Histórias de Mistério e Imaginação”
texto referência para projecto 01, fotografia II


Perto do escurecer de um dia excepcionalmente quente estava eu sentado, de livro na mão, a uma janela aberta, de onde desfrutava, para alem de uma vasto panorama das margens de um rio, um monte distante, cuja vertente, virada para mim, havia sido desprovida, pelo que se chama um aluimento de terras, da porção principal das suas árvores. Os meus pensamentos haviam-se libertado do livro que tinha perante mim para a tristeza e desolação da cidade vizinha. Levantando os olhos do papel, deixei-os cair sobre a face desnuda do monte e sobre um objecto — sobre um qualquer monstro vivo de horrorosa conformação, que, com rapidez, se deslocou do come para o sopé, desaparecendo na densa floresta da base. Quando aquele monstro primeiro se mostrou, duvidei do meu próprio juízo, ou pelo menos da evidência dos meus olhos, e passaram-se muitos minutos antes que me convencesse que não estava doido nem a sonhar. (…)
Estimando o tamanho do monstro por comparação como o diâmetro das grandes árvores próximo das quais passou – os poucos gigantes que tinham escapado á fúria do aluimento –, conclui ser muito maior que qualquer barco de linha actual. A boca do animal estava situada na extremidade de uma tromba de dezoito a vinte metros de comprimento e quase tão grossa como corpo de um elefante vulgar. Próximo da base da tromba havia uma quantidade enorme de pêlo negro e hirsuto — mais do que podia haver nas peles de uma manada de búfalos —, do qual, projectando-se para baixo e para os lados desta, tinha duas gigantescas hastes, de dez a doze metros de comprido, feitas como que de cristal puro e em forma de prisma perfeito, que reflectiam de maneira mais esplendorosa os raios do sol poente. O tronco tinha a forma de uma cunha, com a ponta virada para baixo. Dele saíam dois pares de asas, cada uma delas com cerca de cem metros de comprimento — com um par colocado sobre o outro, e as assas espessamente cobertas com escamas de metal, escamas que pareciam ter três a quatro metros de diâmetro. Verifiquei que as partes superiores e inferiores das asas estavam ligadas por uma forte corrente. Porém, a principal peculiaridade desta coisa monstruosa era a imagem de uma caveira, que cobria quase toda a superfície do peito que estava perfeitamente traçada num branco radioso sobre o campo escuro do corpo, como se tivesse sido aí escrupulosamente desenhada por um artista. Enquanto contemplava este terrífico animal, e muito especialmente o aspecto do seu peito, com um sentimento de horror e de medo, com um sentimento de mal que se avizinhava e que me era impossível reprimir por qualquer esforço da razão, vi as enormes fauces na extremidade da tromba a abrirem-se de repente para soltarem um som tão forte e tão expressivo de terror que ecoou nos meus nervos como um dobre de finados. E quando o monstro desapareceu finalmente no sopé da montanha, caí desmaiado no chão.
Quando recobrei o ânimo, o meu primeiro impulso foi o de informar o meu amigo do que tinha visto e ouvido — e mal posso explicar que sentimento de repugnância, ao fim e ao cabo me impediu de o fazer.
Finalmente, uma noite, três ou quatro dias depois destes sucessos, estávamos ambos sentados no quarto onde eu tinha visto a aparição, eu no mesmo sítio, em frente da mesma janela, e ele estendido num sofá, junto a mim. A associação de lugar e de tempo impeliu-me a narrar-lhe o fenómeno. Escutou-me até ao fim, não sem começar por se rir com gosto, para de seguida adoptar uma atitude extremamente grave, como se a minha loucura estivesse fora de toda a dúvida. Neste momento tive novamente uma viao clara do monstro — para o qual, com um grito de terror absoluto, chamei a sua atenção. Olhou atentamente sustentando que não via nada, embora eu lhe indicasse minuciosamente o andamento do monstro, que descia a face escalvada da montanha.
Sentia-me terrivelmente alarmado, pois considerava a visão como um presságio da minha morte ou, pior ainda, como o prenúncio de um ataque de loucura. (…)
O meu anfitrião, em contrapartida, recuperou até certo ponto a tranquilidade de espírito e interrogou-me rigorosamente sobre a conformação do ser imaginário. Quando o satisfiz inteiramente sobre este ponto, suspirou profundamente como se se sentisse aliviado de uma carga intolerável, e começou a falar, com uma calma que considerei crueldade, sobre vários pontos de filosofia especulativa que, até então, tinha sido objecto de discussão entre nós. Lembro-me dele insistir muito especialmente, entre outras coisas, na ideia de que a principal fonte de erro em todas as investigações humanas reside no perigo que corre a inteligência em subestimar ou sobrevalorizar a importância de um objecto pelas simples avaliação errónea da sua distância. (…)
Nesta altura fez uma pequena pausa, dirigiu-se para o armário de livros e trouxe um tratado corrente de História Natural. Pedindo-me que trocássemos de assento para poder ver melhor os pequenos caracteres do livro, puxou a minha cadeira para a janela e, abrindo o livro, prosseguiu a sua dissertação mais ou menos no tom anterior.
— Não fora a excessiva minuciosidade que pôs na descrição do monstro — disse —, nunca me seria possível demonstrar-lhe do que se trata. Em primeiro lugar, permita-me ler-lhe uma descrição escolar do género Sphinx, da família Crespuscularia, da ordem Lepidoptera, da classe Insecta ou insectos. A descrição diz assim: «Quatro asas membranosas cobertas de pequenas escamas coloridas de aspecto metálico; a boca é formada por uma tromba enrolada, constituída pelo prolongamento das maxilas em cujas paredes laterais se encontram uns palpos Velosos rudimentares; as asas inferiores estão presas às superiores por cerdas; antenas em forma de haste alongada e prismática, abdómen pontiagudo. A esfinge de caveira tem ocasionado por vezes muito terror entre o povo, pelo tom melancólico do grito que emite e pela insígnia da morte que apresenta no tórax.»
Fechou o livro e inclinou-se para a frente, na cadeira, colocando-se precisamente na posição que eu ocupava na altura em que «vi» o monstro.
— Ah!, aqui está! — disse ele. — Está a subir a vertente da montanha e é na realidade um ser notável, admito. No entanto não é de modo nenhum tão grande nem está tão distante como você imagina. O facto é que, quando subia por este fio que uma aranha teceu no caixilho da janela, teria cerca de dois milímetros de comprimento total e estaria também a cerca de dois milímetros de distância da pupila do seu olho.

“Histórias de Mistério e Imaginação”
Edgar Allan Poe