segunda-feira, outubro 25, 2004

Elas não percebem nada

de Boris Vian
texto referência para projecto 01, fotografia II



Antes de mais nada, bailes de máscaras é coisa que devia ser proibida. Chateiam toda a gente e a verdade é que no século xx já não estamos em idade de nos vestirmos de bandido siciliano ou para a grande ária da Tosca, só para ter o direito de entrar em casa de umas pessoas que têm uma filha com quem nos damos — porque esse é que era o problema. Estávamos a 29 de Junho e no dia seguinte a Gaya era apresentada à sociedade. Em Washington isso significa algo assim como uma estopada. E eu, amigo de infância de Gaya, do tipo irmão de leite… — estão a ver. Era rigorosamente obrigado a ir; nunca os pais me perdoariam se não fosse.
Mas então Gaya não teria podido apresentar-se às pessoas como todas essas mesmas pessoas? E com um vestido de noite normal? E com os rapazes de smoking? Aos dezassete anos já não está em idade de enfiar todas aquelas velharias de teatro… Não tem sentido nenhum?
Continuava a fazer a barba diante do meu espelho de aumentar sem me dar ao trabalho de levantar mais problemas: chagavam-me aqueles, que já tinham conseguido enfurecer-me. Recordava a boca de Gaya, as mão da Gaya, e o resto… — tudo mais do que exercitado para poider dispensar uma comédia daquelas.
Pronto. A minha fúria crescia cada vez mais. Pena era que o meu maninho Ritchie não estivesse por cá — porque lhe pediria que me medisse a tensão arterial. Os estudantes de Medicina ficam encantados quendo lhes pedem coisas dessas. Exibem então maquinal niqueladas com ponteiros, mostradores tubos, e contam-nos as batidas do coração ou medem-nos a capacidade respiratória, e nunca qualquer dessas chinesices serviu para alguma coisa. Mas já estava a desviar-me. Tornei a pensar na Gaya.
Ah, ela havia de gostar. Era de mulher que eu estava a mascarar-me. E todos os amiguinhos dela iriam andar à minha volta. Até o meu nome, Francis, calhava bem. Eles iam perceber Frances e estava pregada a partida. Durante todo o serão, a Gaya ia torcer a orelha sem deitar sangue, arrependida de ter dado um baile de máscaras. Como se, para ela, a melhor das máscaras não fosse uma florinha entre os dentes e a sua linda pele das costas, com dispensa de qualquer outra sofisticação.
Da minha janela de guilhotina aberta via um bocado da estátua de McClellan, no cruzamento de Connecticut Avenue com a Columbia. Abrindo-a mais um pouco, conseguia distinguir um canto da bandeira da Legação da Finlândia, entre a Wyoming Avenue e a Califórnia Street. Não muito distintamente. Faz doer os olhos. Toca a fechar a janela. Regressei ao espelho.
Minuciosamente barbeado, tinha a pele lisa como a de uma garota verdadeira, e com um nadinha de fonds de teint ficaria perfeito. A minha única preocupação era a voz. Ora…, com um copo debaixo do nariz nenhum daqueles idiotas iria reparar. O que mais me dava vontade de rir era a ideia de que o Bill ou o Bob me fossem convidar para dançar… Com os seios postiços da minha mãe e um bom slip bem apertadinho, não corria risco nenhum pelo lado dos sinais exteriores, mas não podia deixar de estoirar a rir…
Quanto à vestimenta, tinha-me fartado de puxar pela cabeça. Um vestido dos felizes anos 90, rendas, corpete, saia, meias pretas com fantasia lateral… e botinas de pelica, meus meninos… Tinha tudo isto com a ajuda dos meus amigos que trabalhavam no teatro.
O melhor talvez seja apresentar-me. Francis Deacon, saído de Harvard (mas não propriamente a grande velocidade), munido de um paizinho particularmente rico e de uma mãezinha superdecorativa. Vinte e cinco anos — aparentando dezassete —, más companhias: pugilistas, bebedolas, desordeiros e senhoras bonitas de quem se gosta por dinheiro —, um excelente partido. Nada mau tipo, com um grande pó aos intelectuais. Mais ou menos desportivo. Desportos suaves: judo, luta livre, vela, um pouco de remo, esqui, etc. Apecto lingrinhas – sessenta e cinco quilos e cinquenta e seis centímetros de cintura. A minha mãe tinha menos um que eu. Mas custava-lhe caro em massagens.
Sentei-me ao pé do espelho e peguei no objecto com que me preparava para me supliciar. Um grosso pau de cera especial que comprara no chinês da mãe e que ele afirmava usar regularmente para depilar as clientes.
Com um isqueiro numa das mãos e a cera na outra, fiz girar a roda e a chamazinha azul começou a lamber o translúcido cone truncado.
Derretia. Estendi a perna e, truca!, colei a coisa aos pêlos “estendendo rapidamente”, como dizia o papel.
Cinco minutos depois, recuperada a razão, comecei a considerar que, realmente, se logo à primeira aquilo me cusava um tocheiro de crisal e um epelho de dois metros por dois, o melhor era ir directamente ao chinês.
Olhei para o relógo. Tinha tempo. Levantei o auscultador do telefone. Mandei para o diabo a avareza.
— Esá? Wu Chang? Daqui Francis Deacon. O senhor tem um minuto livre?
Ele disse que sim, naturalmente.
— Eu já vou — disse eu. — Daqui a cinco segundos estou aí.
A verdade é que cinco segundos para um tuo a coxear é pouco — calculei dez.





In, VIAN, Boris (sob o pseudónimo de Vernon Sulivan),
Elas não percebem nada, Relógio d’Água, Lisboa, 2003.