sexta-feira, maio 06, 2005

"Viagem ao fim da noite"

Clara Afonso
Introdução e contextualização "Viagem ao fim da noite" do autor Céline (Louis Ferdinand Destouches)
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O "Século XX" começa depois da Primeira Guerra Mundial, ou seja, na década de vinte, mas a guerra marca um ponto de mutação no desenvolvimento somente na medida em que fornece ocasião para uma escolha entre as possibilidades existentes. As três principais correntes de arte no novo século têm predecessões no período imediatamente anterior: o cubismo em Cézanne e nos neoclássicos, o expressionismo em Van Gogh e Strindberg, o surrealismo em Rimbaud e Lautréamont. A continuidade do desenvolvimento artístico corresponde a uma certa estabilidade económica e social do mesmo período. Sombart limita o tempo de vida do capitalismo a 150 anos e fá-lo terminar com a eclosão da guerra. No período anterior a 1914, entretanto, somente os socialistas falam do colapso do capitalismo; nos círculos burgueses as pessoas certamente têm consciência do período socialista, mas não acreditam nas contradições da economia capitalista. Nesses círculos não se pensa numa crise do próprio sistema. O estado de espírito geral, confiante, continua até aos primeiros anos após o final da guerra e a atmosfera na burguesia não é, de desespero, a despeito da classe media-baixa, que tem de lutar contra terríveis dificuldades. A verdadeira crise económica principia em 1929 com o "Crash" nos Estados Unidos que põe fim ao "boom" da guerra e do pós-guerra e revela, de forma inconfundível, as consequências da falta de planeamento internacional da produção e distribuição. As pessoas começam a discutir por toda a parte a crise do capitalismo, o fracasso da economia livre e da sociedade liberal; a eminência de uma catástrofe e a ameaça da revolução. A história dos anos 30, é a história de um periodo de crítica social, de realismo e de radicalização de atitudes políticas e da convicção cada vez mais generalizada de que somente uma solução radical pode proporcionar algum remédio, por outras palavras, de que os partidos moderados tiveram a sua vez. Mas em nenhum segmento da sociedade, existe maior consciência da crise porque passa o modo de vida burguês e em nenhum outro lugar se fala tanto do fim da época burguesa. Fascismo e Bolchevismo são uninânimes em considerar o burguês um morto-vivo e em voltar-se com a mesma intransigência contra o liberalismo e o parlamentarismo. De um modo geral, a intelligentsia alinha-se ao lado das formas autoritárias de governo, exige ordem, disciplina, é inspirada com entusiasmo por uma nova igreja uma neo-escolástica e um neobizantismo. A atracção do fascismo para a deprimida camada literária, confundida pelo vitalismo de Nietzsche e Bergson, consiste na ilusão de valores absolutos, sólidos e indiscutíveis, e na esperança de se livrar da responsabilidade que está vinculada a todo o racionalismo e individualismo. Do comunismo, a intelligentsia promete a si mesma estabelecer um contacto directo com as massas populares e redimir-se do seu isolamento na sociedade. Nessa situação, os porta-vozes da burguesia liberal não podem pensar em nada melhor do que sublinhar as características que o fascismo e o Bolchevismo têm em comum, desacreditado um pelo outro: assinalam o inescrupuloso realismo pecualiar a ambos e encontram numa tecnocracia desumana e implacável o denominador comum a que podem ser reduzidas as suas formas de organização e governo 1. Desprezam deliberadamente as diferenças ideológicas entre as várias formas de governo e representam-nas como meras "técnicas", ou seja, como a província do expert do partido, do administrador politico, do engenheiro da máquina social, numa palavra, dos "gerentes". Existe sem dúvida uma certa analogia entre as diferentes formas de regulamento social, e se partirmos do mero facto do tecnicismo e da padronização, a ele relacionada poderemos até discernir uma semelhança entre Rússia e América 2. Nenhuma maquinaria estatal pode hoje dispensar os "gerentes". Estes exercem o poder político em nome de massas mais ou menos numerosas, tal como os técnicos administram as suas fábricas, e os artistas pintam e escrevem para elas. A questão resume-se sempre em saber no interesse de quem o poder é exercido. Nenhum governo no mundo se atreve a admitir nos dias de hoje que a sua conduta não é exclusivamente ditada pelos interesses do povo.


Impressões sobre o autor que me motivou esta narrativa.

As fotografias não se movimentam. É um vício de visão que permite essa aparência. Uma ilusão. A fotografia também pode captar a ilusão de movimento do video. Dessa ilusão se alimentará esta narrativa quando tenta nos seus "frames" fixar o movimento dos filmes que vi e como tantos artistas plásticos, fotógrafos, gostaria de passar pelas imagens as recordações de outras imagens cinematográficas.
Esta obra de livro "Viagem ao fim da noite" tem como tema a revelação da miséria, da guerra, da doença sem fim, da morte. Ferdinand Bardamu, o narrador desta viagem terá como companheiro Robinson, seu duplo, seu cúmplice, o que actua, o que comete os crimes indissociáveis deste homem formado pelos vícios e oportunismos da sociedade. Bardamu, espectador assaltado pela angústia precisa de Robinson para penetrar na noite das vítimas do mundo. É uma narrativa que se compraz na parte maldita e reprovável da sociedade.
Em oposição figurino francês de um classicismo fundado no equilíbrio e na elegância Louis-Ferdinand Destouches, Céline entrou na literatura como alguém que destrói todas as imagens e todas as convenções. "Viagem ao fim da noite" (1932) mais do que uma novidade literária é um acontecimento revolucionário. Entusiasticamente saudado por Léon Daudet (nesse tempo a sua opinião fazia e desfazia reputações literárias). Céline surgiu como um escritor que tudo ousava - e tudo exprimia numa linguagem muito sua. O estilo coloquial e torrencial não recuava diante do calão. Romancista, também medico dos bairros periféricos de Paris, mergulhou nas entranhas da miséria humana. Descida às zonas nocturnas onde o homem é prisioneiro do seu próprio inferno. "Viagem até ao fim da noite", não é uma comedia à maneira de Dante, porque privada, de toda a esperança em qualquer céu. Livro que pelo recurso ao "argot", dir-se-ia ilegível no original e intraduzível em qualquer lingual, é na versao de Aníbal Fernandes uma lograda transposição do pessoalíssimo idioma de Céline. Escritor marginal ou maldito, réu e juis e deuma época de decadencia, Céline está a ser postumamente reabilitado, e não virá long eo tempo em que por direito próprio ocupará o Panteão das glories francesas. Depois da coroa de espinhos, a coroa de louros. Céline nasceu em 1894 e morreu em 1961.
Se ao menos tivesse tido tempo! Mas já não tinha. E agora já nada havia para roubar! Que bom seria estar numa prisão aconchegada, dizia para comigop, onde as balas não passam! Onde nunca passam! Eu conhecia uma pronta a servir ao sol, ao calor! Como num sonho, a de Saint Germain precisamente, tão perto da floresta, eu conhecia-a bem, antigamente passava muitas vezes por lá. Como nós mudamos! Nessa altura eu era uma criança e fazia-me medo, a prisão. É que ainda não conhecia os homens. Nunca mais vou acreditar no que eles pensam. Dos homens e só dos homens devemos ter sempre medo.


Viajar é muito útil, faz trabalhar a
imaginação. O resto não passa de
decepções e fadigas. A nossa viagem é
inteiramente imaginária. Daí a sua
força.

Vai da vida até à morte. Homens,
animais, cidades e coisas, é tudo
imaginado. Um romance, é apenas uma
história fictícia. Di-lo Littré, que nunca
se engana.

Aliás, à primeira vista todos podem
fazer o mesmo. Basta fechar os olhos

É do outro lado da vida.




1. HERMANN KEYSERLIN: Die neuentsehende Welt, 1926 - JAMES BURNHAM: The Managerial Revolution, 1941

2. M.J. BOON: The American Experiment, 1933, p.255