segunda-feira, dezembro 06, 2004

‹‹O FASCÍNIO DO PEQUENO LAGO›

Partir de um conteúdo literário e ilustrá-lo é o objectivo desta proposta de trabalho. Sendo a escolha arbitrária ou livre do ponto de vista individual, a opção centra-se no livro ‹‹Os contos de Virginia Woolf››, mais concretamente o conto ‹‹O fascínio do pequeno lago››. Esta opção justifica-se essencialmente nas questões que a Virginia Woolf trata na sua literatura - a Humanidade, a Efemeridade, a Existência, o Espelho, a Máscara, etc; por outras palavras, a evanescente matéria da vida, um universo que diz respeito aos Homens no sentido global da existência, e ao Homem no seu carácter mais profundo e particular. Fragmentando a sua reflexão, em apenas um conto - ‹‹o fascínio do pequeno lago››, representa uma metáfora da vida, através do seu lado matérico (imagens do exterior que se reflectem na superfície da água, neste caso num pequeno lago; e o seu lado imatérico (pensamentos de pessoas depositados no interior do lago). O binómio Exterior/Interior condensa todo o conteúdo literário. Esta bipolaridade pode ser vista aos olhos de Platão como o mundo sensível, o mundo das aparências, de trevas, de mentiras e mal - Exterior representado pela superfície do lago, no qual se espelha o mundo que o circunda (reflexo de um cartaz que anuncia a venda da casa onde está situado o lago) e o mundo supra sensível, o inteligível onde tem lugar as ideias, o eterno e o imutável - Interior representado pela profundidade do lago onde estão depositados pensamentos (das pessoas que por ali passaram) a "meditação, a ruminação de uma mente".

‹‹O FASCÍNIO DO PEQUENO LAGO›

Deveria ter tido uma grande profundidade — certamente não seria possível ver-lhe o fundo. Em redor da margem havia um rebordo tão espesso de juncos que os seus reflexos causavam uma escuridão semelhante à escuridão da água muito profunda. No entanto havia no centro algo de branco. A grande quinta que fica a uma milha dali ia ser vendida e alguma pessoa zelosa, ou talvez possa ter sido a brincadeira de alguma criança, havia colado um dos cartazes que anunciava a venda, com cavalos, utensílios para agricultura e vitelas, num toco de árvore ao lado do lago. O centro da água reflectia o cartaz branco e quando o vento soprava o centro do lago parecia ondular e oscilar como uma peça de roupa lavada. Podia-se entrever na água as grandes letras vermelhas em que Romford Hill estava impresso. Havia um tom avermelhado no verde que ondulava de margem a margem.

Todo o tipo de fantasias, queixas, segredos
Mas se uma pessoa se sentasse entre os juncos e olhasse para o lago — os lagos têm um fascínio curioso, não sabemos ao certo qual — as letras vermelhas e pretas e o papel branco pareciam jazer como uma fina película sobre a água, enquanto por baixo permanecia alguma profunda vida subaquática como a meditação, a ruminação de uma mente. Muitas, muitas pessoas devem ter ido lá sozinhas, de tempos a tempos, de idade em idade, deixando cair os seus pensamentos na água, fazendo-lhe alguma pergunta, como alguém que a fizesse a si próprio nesta noite de Verão. Talvez fosse esta a razão do seu fascínio — o facto de encerrar nas suas águas todo o tipo de fantasias, queixas, segredos, não impressos ou ditos em voz alta, mas num estado líquido, flutuando uns por cima dos outros, quase descarnados. Um peixe poderia atravessá-los a nado, poderiam ser cortados ao meio pela lâmina de uma cana. Ou a lua poderia aniquilá-los com o seu grande prato branco. O encanto do lago residia no facto de lá terem sido depositados pensamentos por pessoas que haviam partido e sem os seus corpos os seus pensamentos vagueavam por ali livres, cordiais e comunicativos, no fundo comum.

Ficar sentados e de olhar para dentro dos lagos.
Entre todos esses pensamentos líquidos alguns pareciam juntar-se e formar pessoas reconhecíveis — apenas por um momento. E via-se um rosto avermelhado de bigodes formado no lago, debruçado sobre ele, a beber da sua água. Eu vim cá em 1851 depois do calor da Grande Exposição. Vi a rainha inaugurá-la. E a voz falava num riso abafado, líquida, fácil, como se se tivesse desfeito das suas botinas e colocado o chapéu alto na margem do lago. Meu Deus, que calor estava! e agora tudo terminado, tudo desfeito, claro, pareciam dizer os pensamentos, oscilando entre as canas. Mas eu era uma amante, começou outro pensamento, deslizando lentamente sobre o outro de forma silenciosa e ordenada como peixes que não se obstruem o caminho. Uma rapariga; costumávamos vir para aqui descendo da quinta (o cartaz da sua venda reflectia-se na superfície das águas) naquele Verão, em 1662. Os soldados nunca nos viam da estrada. Fazia muito calor. Ficávamos ali deitados. Ela escondia-se, deitada nos juncos com o seu amante, rindo para o lago e fazendo deslizar para dentro dele pensamentos de amor eterno, de beijos ousados e desespero. E eu estava muito feliz, dizia outro pensamento dando uma olhadela brusca ao desespero da rapariga (porque ela tinha-se afogado). Costumava vir pescar aqui. Nunca apanhámos a carpa gigante mas uma vez vimo-la — no dia em que Nelson combateu em Trafalgar. Vimo-la debaixo do salgueiro — palavra de honra! que monstro era! Dizem que nunca foi apanhada. Ai, ai, suspirou uma voz, escorregando sobre a voz do rapaz. Uma voz tão triste só pode vir do fundo do lago. Erguia-se por debaixo das outras tal como uma colher levanta todas as coisas numa taça com água. Esta era a voz que todos desejávamos ouvir. Todas as vozes deslizaram gentilmente até à berma do lago para ouvir a voz que, parecendo tão triste — devia seguramente saber a razão de tudo isto. Porque todos desejavam saber. Uma pessoa aproximava-se do lago e abria caminho entre as canas para poder ver a uma profundidade maior, através dos reflexos, através dos rostos, através das vozes, até ao fundo. Mas ali, por baixo do homem que tinha estado na Exposição, e da rapariga que se afogara e do rapaz que tinha visto o peixe; e da voz que gritava ai! ai!, havia sempre, no entanto, ainda alguma coisa. Havia outra cara, outra voz. Um pensamento vinha e cobria outro. Porque, apesar de haver momentos em que uma colher parece estar prestes a levantar-nos a todos, e todos os nossos pensamentos e desejos e questões e confissões e desilusões para a luz do dia, de alguma maneira a colher acaba sempre por escorregar e voltamos a cair pela margem de novo para dentro do lago. E mais uma vez todo o seu centro está coberto pelo reflexo do cartaz que anuncia a venda da quinta de Romford Mill. Talvez seja por isso que gostamos de ficar sentados e de olhar para dentro dos lagos.

Imagens ao encontro do pensamento e da memória
Depois de elaborada uma análise do conto ao nível do conteúdo ou dos conceitos implícitos, as condições reúnem-se para que em termos imagéticos se soltem elementos estruturantes e fundamentais na sua resolução prática. No conto, a realidade Exterior é-nos apresentada apenas através de um espelho, ou seja, através de elementos reflectidos na superfície do lago, e a realidade Interior através da profundidade do lago, onde jazem pensamentos, sendo estes relatos vivênciais do passado, ou seja, acções ou acontecimentos. Em suma, nunca há imagens directas da realidade, há sempre um filtro, sendo neste caso o espelho (do exterior) e o pensamento (memória), ou seja, imagens reproduzidas (criadas) na cabeça da personagem. É através destes elementos que o trabalho ao nível prático/fotográfico vai ser conduzido ou orientado. Produzir imagens com referência ao nível do reflexo, do espelho para retratar um Exterior (matérico) e produzir imagens através do artifício da luz (por ex.) que vá ao encontro do pensamento e da memória (imatérico).

Textos sobre o projecto visual de Dária Joana Teixeira Salgado, 5o ano Fotografia II Novembro de 2004